terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Décima da Saudade - Rodrigo Bauer


No cerne ainda sustento
o que me restou do que eu era...
A estância, quase tapera, 
resiste à fúria dos ventos!
Na cancha do firmamento,
a lua potra escarceia;
o meu olhar bruxuleia
na imensidão da campanha
e uma saudade tamanha
chega à estância e se apeia...

Nem mesmo dá: "Oh de Casa!"
ou a cuscada desperta...
Saudade viaja deserta
voando sem bater asas...
Calada, sopra nas brasas
de um pai-de-fogo de antanho!
Não dá pra ver seu tamanho,
quem chega assim, de repente,
ou sabe muito da gente,
ou se perdeu do rebanho!

Aos poucos a reconheço:
seus traços, suas manias...
Seu toque me acaricia,
mas só eu sei a que preço!
Ás vezes eu adormeço,
por outras vou, tresnoitado,
sorver o fel do passado
que me embriaga e tortura
nas madrugadas escuras
que eu atravesso acordado!

La maula, velha saudade
que não respeita cancelas,
cercas, portões ou tramelas
e, vida afora, me invade!
Tentei morar na cidade
pra despistar minhas ânsias:
mas pouco adianta a distância,
pois ela sempre me encontra
e, no final, me reponta
de volta às casas da estância!

Ela me fala de dantes,
dos braços da juventude;
acorda as vicissitudes
de velhas paixões errantes;
evoca um tempo distante
de tropas e de baguais;
anima os restos mortais
do meu tordilho enterrado
e os sonhos abandonados
 de tudo o que não sou mais!

Traz o cheiro da mangueira,
das marcações e cucharras,
o bordonear da guitarra
que, um dia, foi companheira...
Vem assoviar na chaleira
do chimarrão solitário...
Saudade é o próprio inventário
do ocaso que rumoreja
alguém que já não festeja
quando faz aniversário!

O tempo é o sal da saudade...
Mais que alimento, é o tempero -
janeiro atrás de janeiro -
nos engordando na idade
e, lejos da mocidade,
somando marcas no couro,
o velho entono de touro
vai se domando na estrada,
tal fosse a tropa cansada
rumando pro matadouro!

Saudade é alma penada
que vem assombrar meu sono...
Seu pêlo é o pêlo do outono
acinzentando as canhadas...
É a alma do próprio nada
que vem povoar de vazio
compridas noites de frio
em, que entre mágoas errôneas,
vivo a matear as insônias
deste meu mundo febril!

As rugas são os caminhos
nos mapas de um epitélio!
É a geografia dos velhos
que vão ficando sozinhos!
Já bem distante do ninho,
saudade vai migratória;
inventa mil trajetórias,
arrisca novos estragos,
mesmo arranchada no pago
onde plantei minha história!

Mas quando a bruxa saudade
deixa os limites da estância,
aumenta a minha inconstância,
amarga mais ansiedade...
Embora triste, é verdade,
com ela no meu costado
me sinto mais amparado
e, em sua ausência, um ar morno
me faz clamar seu retorno,
pois sou melhor ao seu lado!

(Décima da Saudade - Rodrigo Bauer)
Texto do livro "Rodrigo Bauer 20 anos de Poesia"

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